30 maio 2007

SOLTOS OS 48 DA OPERAÇÃO NAVALHA: DERROTA DO ESTADO POLICIAL

Liberdade é a regra
Leia os votos que libertaram funcionários da Gautama
por Priscyla Costa

A boa aplicação dos direitos fundamentais de caráter processual é justamente o que diferencia um regime democrático daquele de índole totalitária. Foi com base nesse fundamento que o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, concedeu a liberdade para Vicente Vasconcelos Coni, Maria de Fátima Cesar Palmeira, João Manoel Soares Barros e Abelardo Sampaio Lopes Filho — todos funcionários da construtora Gautama.

O grupo foi preso pela Polícia Federal durante a Operação Navalha e mesmo depois do depoimento prestado à ministra Eliana Calmon, responsável pelo trâmite do Inquérito no Superior Tribunal de Justiça, voltaram à superintendência da Polícia Federal por ordem da ministra.

No pedido de Habeas Corpus ajuizado no STF, a defesa afirmou que o ato da ministra configurou constrangimento ilegal porque a nova ordem de prisão não foi fundamentada.

Gilmar Mendes acolheu o pedido e repetiu os argumentos das três decisões. Considerou que “a prisão preventiva é medida excepcional que, exatamente por isso, demanda a explicitação de fundamentos consistentes e individualizados com relação a cada um dos cidadãos investigados”.

“A idéia do Estado de Direito também imputa ao Poder Judiciário o papel de garante dos direitos fundamentais. Por conseqüência, é necessário ter muita cautela para que esse instrumento excepcional de constrição da liberdade não seja utilizado como pretexto para a massificação de prisões preventivas”, afirmou o ministro.

Para Gilmar Mendes, “não se pode perder de vista que a boa aplicação das garantias fundamentais configura elemento essencial de realização do princípio da dignidade humana na ordem jurídica. Como amplamente reconhecido, o princípio da dignidade da pessoa humana impede que o homem seja convertido em objeto dos processos estatais”.

Nesta terça-feira (29/5), Gilmar Mendes também concedeu Habeas Corpus para livrar da prisão o empresário Zuleido Veras, dono da Gautama. Com as liminares, nenhum dos 48 presos na Operação Navalha permanecerá detido.

A operação

A Polícia Federal deflagrou no dia 17 de maio a Operação Navalha, contra acusados de fraudes em licitações públicas federais. Segundo a PF, o esquema de desvio de recursos públicos federais envolvia empresários da construtora Gautama, sediada em Salvador, e servidores públicos que operavam no governo federal e em governos estaduais e municipais.

De acordo com a acusação, o esquema garantia o direcionamento de verbas públicas para obras de interesse da Gautama e então conseguia licitações para empresas por ela patrocinadas. Ainda de acordo com a PF, as obras eram superfaturadas, irregulares ou mesmo inexistentes.

No mesmo dia da operação, o ministro Gilmar Mendes concedeu a primeira liminar no curso da operação, para impedir a prisão do ex-procurador-geral do Estado do Maranhão, Ulisses César Martins de Sousa. Em seguida, instaurou-se a polêmica.

Primeiro, a PF criticou as liminares concedidas pelo ministro para libertar presos da Operação Navalha. Em seguida, conversas telefônicas vazaram do inquérito da Polícia Federal numa tentativa de comprometer o ministro. De fato, há um Gilmar citado nas conversas, mas não o ministro Gilmar Ferreira Mendes. Segundo a própria PF, trata-se de Gilmar de Melo Mendes, ex-secretário da Fazenda de Sergipe.

Na quarta-feira (24/5), Gilmar Mendes se irritou com a divulgação da informação de que o seu nome aparecia em lista de autoridades que receberam presentes da construtora Gautama. “Há uma estrutura de marketing para valorizar o trabalho da Polícia Federal e depreciar a Justiça”, protestou. “Fontes da Polícia Federal informam que o ministro Gilmar Mendes está na lista. Ora! Que o ministro da Justiça venha dizer: o ministro Gilmar foi citado, ou que o procurador-geral assuma esse tipo de ônus."

Mendes acusou ainda a PF de “canalhice” e de uso de “método fascista” de investigação. As declarações foram feitas após o vazamento das conversas. Mais tarde, a revista Consultor Jurídico mostrou que o pedido de prisão feito pela PF contra o ex-procurador-geral do Estado do Maranhão foi
baseado em erro.

Leia os votos

MED. CAUT. EM HABEAS CORPUS 91.524-8 BAHIA
RELATOR: MIN. GILMAR MENDES
PACIENTE(S): MARIA DE FÁTIMA CESAR PALMEIRA
IMPETRANTE(S): SÔNIA COCHRANE RÁO E OUTRO(A/S)
COATOR(A/S)(ES): RELATORA DO INQUÉRITO Nº 544 DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

DECISÃO: Trata-se de habeas corpus, com pedido de medida liminar, impetrado em favor de MARIA DE FÁTIMA CESAR PALMEIRA, em que se impugna prisão preventiva decretada pela Min. Eliana Calmon, do Superior Tribunal de Justiça, relatora do Inquérito no 544/BA.

A paciente é engenheira civil e, atualmente, desempenha a atividade de diretora comercial da Construtora GAUTAMA. A prisão preventiva foi decretada pelo suposto envolvimento da investigada com a “associação criminosa” em apuração nos autos do referido inquérito, sob a acusação de que teria atuado juntamente com ZULEIDO VERAS, decidindo as ações necessárias a viabilizarem o processo de direcionamento das obras públicas à GAUTAMA.

Quanto à plausibilidade jurídica do pedido (fumus boni iuris), a inicial alega, em síntese:

“[...] A paciente foi presa no último dia 17 de maio em virtude de decisão que decretou a custódia preventiva de diversas pessoas nos autos do que se convencionou chamar ‘Operação Navalha’ (doc. 1).
Referida operação foi deflagrada a partir da apuração de uma série de pretensos delitos, elencados pela D. Ministra a quo como sendo os de fraude a licitação, peculato, corrupção de servidores públicos, tráfico de influência, lavagem de dinheiro, formação de quadrilha e organização criminosa.
Contra a referida decisão foram impetrados diversos habeas corpus perante essa E. Suprema Corte, tendo, recentemente, grande parte deles perdido o objeto em virtude da expedição de alvarás de soltura decorrentes da oitiva dos respectivos pacientes.
Ou seja, à medida em que tomava os depoimentos dos investigados, a eminente Ministra Relatora os vinha liberando do imenso constrangimento ilegal imposto.
Em relação à ora paciente, contudo, após ouvi-la e tendo ela respondido a todas as questões que lhe foram formuladas, entendeu por bem a D. autoridade a quo manter a segregação sem nenhuma fundamentação (doc. 02).
É esse, portanto, o constrangimento que se pretende ver remediado.
Como adiante restará demonstrado, não se encontra nos autos um único sequer dos requisitos autorizadores da prisão preventiva da paciente, padecendo a r. decisão atacada de insuperável nulidade, sendo imperiosa a concessão do presente habeas corpus para que se lhe conceda o legítimo direito à liberdade.
[...]
Por se tratar de providência excepcional face ao princípio da presunção de inocência, a decisão que decreta prisão preventiva deve ser exaustivamente fundamentada, nela se indicando as razões concretas que imponham a custódia anterior a eventual condenação definitiva.
Assim, para que se tenha por motivada uma decisão que determina o encarceramento preventivo, não basta enunciar argumentos abstratos, presunções ou conjecturas, como tampouco fatos impertinentes à natureza cautelar - e portanto instrumental - da medida extrema.
Para fundamentar a decisão, sustentou-se a eminente Ministra em dois pilares: garantia da ordem pública e econômica e a conveniência da instrução criminal.
[...] a conclusão de que a ordem pública estaria em perigo, caso a paciente e demais investigados não fossem presos preventivamente, busca amparo, principalmente, em argumentos que revelam verdadeiro pré-julgamento da conduta a eles sequer formalmente imputada. Afinal, o motivo para a prisão cautelar seria, precisamente, a hipotética prática dos delitos em apuração, sobre os quais nem sequer foi instaurada a ação penal.
Evidentemente, retira-se o fundamento para o decreto coercitivo da própria conduta pela qual a paciente está sendo investigada, como se uma acusação - informal, repita-se - pudesse ser tida como procedente antes mesmo de proferida eventual sentença condenatória, de todo modo, recorrível.
Com efeito, não há como falar em avanços sobre o erário, ‘desmandos administrativos e delitos praticados pelo grupo’, os quais ‘minam os recursos públicos’, sem partir da premissa de que a paciente efetivamente praticou os supostos delitos objeto de apuração; ou seja, sem presumi-la culpada de fatos pelos quais está apenas sendo investigada.
[...]
Resta, assim, evidente que, não obstante a amplitude das investigações, nada há nos autos a justificar o decreto de prisão em desfavor da paciente. As parcas palavras despendidas com a realidade fática que autorizaria a segregação simplesmente não condizem com a severidade da decisão.
A r. decisão atacada viola, a um só tempo, a garantia insculpida no artigo 93, IX da Constituição da República e o próprio teor do artigo 312 do Estatuto Processual Penal” – (fls. 4-18).

Com relação à urgência da pretensão cautelar (periculum in mora), a defesa argumenta que:

“O periculum in mora é igualmente gritante. Cada novo dia de recolhimento ao cárcere representa insuportável reedição da injustiça consubstanciada no r. decreto de prisão, absolutamente carente de idônea fundamentação.
Em face da flagrante desnecessidade da custódia, bem como da ausência de qualquer dos pressupostos legais arrolados no artigo 312 do Código de Processo Penal, de rigor a concessão da ordem para o fim de ser revogada a custódia antecipada da paciente” – (fl. 19).

Com base nessa argumentação, a inicial postula “a concessão da MEDIDA LIMINAR pleiteada - com a imediata expedição de alvará de soltura em seu favor - e, posteriormente, da própria ordem, com a confirmação de seu direito à liberdade” - (fls. 22/23).

Passo a decidir tão-somente o pedido de medida liminar.

Neste habeas corpus, impugna-se, em síntese, a validade da fundamentação do decreto de prisão preventiva expedido em face da ora Paciente (MARIA DE FÁTIMA CESAR PALMEIRA).

Da leitura do ato decisório, observa-se que, em princípio, o elemento concreto apontado para a decretação da prisão preventiva da ora paciente diz respeito ao fato de que a investigada, juntamente com ZULEIDO VERAS, interagia com os demais agentes, decidindo as ações necessárias a viabilizarem o processo de direcionamento das obras públicas à GAUTAMA. Dentre outras tarefas destaca-se a intermediação para pagamento de vantagens indevidas aos servidores do Estado de Alagoas, servindo também de intermediária junto ao Governador do Estado do Maranhão, Jackson Lago.

A Constituição Federal de 1988 atribuiu significado ímpar aos direitos individuais. Já a colocação do catálogo dos direitos fundamentais no início do texto constitucional denota a intenção do constituinte de emprestar-lhes significado especial. A amplitude conferida ao texto, que se desdobra em setenta e oito incisos e quatro parágrafos (CF, art. 5º), reforça a impressão sobre a posição de destaque que o constituinte quis outorgar a esses direitos. A idéia de que os direitos individuais devem ter eficácia imediata ressalta, portanto, a vinculação direta dos órgãos estatais a esses direitos e o seu dever de guardar-lhes estrita observância.

O constituinte reconheceu ainda que os direitos fundamentais são elementos integrantes da identidade e da continuidade da Constituição, considerando, por isso, ilegítima qualquer reforma constitucional tendente a suprimi-los (art. 60, § 4º). A complexidade do sistema de direitos fundamentais recomenda, por conseguinte, que se envidem esforços no sentido de precisar os elementos essenciais dessa categoria de direitos, em especial no que concerne à identificação dos âmbitos de proteção e à imposição de restrições ou limitações legais.

E no que se refere aos direitos de caráter penal, processual e processual-penal, talvez não haja qualquer exagero na constatação de que esses direitos cumprem um papel fundamental na concretização do moderno Estado democrático de direito.

Como observa Martin Kriele, o Estado territorial moderno arrosta um dilema quase insolúvel: de um lado, há de ser mais poderoso que todas as demais forças sociais do país – por exemplo, empresas e sindicatos –, por outro, deve outorgar proteção segura ao mais fraco: à oposição, aos artistas, aos intelectuais, às minorias étnicas
[1][1]. O estado absolutista e os modelos construídos segundo esse sistema (ditaduras militares, estados fascistas, os sistemas do chamado “centralismo democrático”) não se mostram aptos a resolver essa questão.
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Revista Consultor Jurídico, 30 de maio de 2007

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